Domingo
- Isadora Beatriz de Paula Pereira França
- Jul 30
- 2 min read
Updated: Aug 12

É janeiro, 2024. O relógio marca exatamente 18h30. O sol domina o início da noite, ainda longe do ocaso. Nessa época do ano, as tardes ganham nuances bonitas e particulares. Hoje, domingo, o quadro que se desenha lá fora realça tons de amarelo e verde — os mesmos que costumo usar na matização das minhas fotos. Uma cena que não carece de nenhum retoque, e minha mão coça com o impulso de capturar cada detalhe disso. Mas estou com preguiça de me levantar.
Acima da cama, observo meu mural de memórias — ele está menor agora. Se estivesses aqui, verias rostos familiares, inclusive o de quem um dia foi meu cachorro; agora parte de uma outra vida. A despedida dela fora abrupta. Não tive a chance de abraçá-la, de dizer que tudo ficaria bem. Não pude jogar a melancia de pelúcia pela última vez, nem aninhar aqueles sete quilos nos braços por mais um momento, como a um bebê. Independentemente disso, ela permanece na minha parede, no meu cartão de memória e em cada pedaço do que me constitui – minha eterna criança e melhor amiga.
A paisagem muda rapidamente. Agora, o céu é rosa, laranja e azul pastel. Nada me convence de que não há uma falha no tempo neste horário — ele claramente passa mais depressa do que os outros. Sei disso desde criança. Lembro dos dias quando jogava Skylanders: Spyro’s Adventure, cujo céu ilustrado do jogo ostentava as mesmas cores e evocava a mesma sensação que me assalta ao olhar para o céu das seis — uma melancolia antecipada.
É intrigante o que se desenrola além das paredes. Elas, que têm circundado todo o meu universo, resguardam emoções muito singulares. Algumas, como essa sobre as cores, permanecem cativas à memória. Ninguém conhece os muitos porquês que mantemos enclausurados, nem o que acontece quando a janela se fecha no último andar de uma casa suburbana, escondendo as intrincadas dinâmicas familiares. Moro aqui há quase um ano e nunca vi o rosto dos vizinhos do lado.
A garota loira do primeiro andar cruza o meu caminho de vez em quando. Às vezes, nos cumprimentamos. Desconheço suas atividades lá embaixo, e ela certamente não faz ideia dos pensamentos que cultivo aqui em cima. Mesmo que virássemos amigas, o que se passa atrás da porta dela continuaria inacessível. E eu jamais saberia das lutas que ela enfrenta para adormecer e fugir dos tormentos diários.
Se, por acaso, ela decidisse me confidenciar um arrependimento, talvez eu oscilasse entre julgá-la com base nas máximas que ouvi a vida inteira e tentar compreender suas particularidades, que obviamente desconheço. Quem sabe eu conseguisse transcender essa previsibilidade e me abster dos julgamentos infundados.
Mas é estranho como meus próprios parâmetros parecem me conferir o tempo todo uma falsa autoridade judicante — ainda que eu não deseje isso. Tenho a sorte de não ser uma juíza, apesar da cólera que me causam as inúmeras injustiças que transbordam nas notícias todos os dias. O senso moral é, afinal, uma conveniência íntima.
Comments